Tudo a minha volta está se movendo. O tempo passa rápido demais e eu só consigo pensar em como queria poder registrar tudo o que vivo e vejo. E qual a melhor forma de registrar uma vida de olhares e sensações, se não colocando-as em sentenças e tempos verbais?
Tenho cinco anos. Moro no sexto andar.
Da minha sacada, consigo ver abaixo, o parquinho do meu condomínio; à esquerda,
a rua que me leva até a pré-escola; e a frente, o resto bem amplo da cidade. Dizia
meu pai, que por trás de toda aquela floresta de prédios, ficava a outra parte
do mundo. E eu sempre achava que era o mar. Só podia ser o mar. Tão lindo
quanto nos filmes, minha imaginação desenhava morros esverdeados e água azul.
Um sol radiante e até crianças montando castelos de areia em frente aos seus
pais.
Recentemente, encontrei, sem querer,
perdida dentro de um livro, uma carta escrita pela minha mãe com a data do dia
28 de Agosto de 2007 - dia esse que marcava, exatamente, meus 10 anos de vida.
Nessa carta, ela expressava o seu amor e mencionava como até meu nome já tinha
em mente dez anos antes do meu nascimento.
Minha mãe era uma jovem de 16 anos
quando conheceu meu pai, um rapaz de 18. Ela era artística e sabia se mover.
Dançava, cantava e desenhava. Ele era lógico
e sabia escutar. Acho que é por isso
que trabalhava com tudo o que lhe era oportuno e até teve uma carreira de DJ na
época das discotecas. A minha história favorita é a de quando ambos, já casados
e um pouco mais velhos, dirigiam um caminhão de refrigerantes; vendendo suas
mercadorias em COHABs de São Paulo, onde habitavam moradores de menor renda e,
dificilmente, se encontrava comércios fixos à disposição pelas redondezas.
Essa história é apenas uma de muitas
que romantizo e classifico na categoria de histórias aventureiras, daquelas que
nos fazem pensar no quão fortes e astutos nossos pais podem ser. Que me faz
refletir sobre o que ambos devem ter experienciado até serem o que são hoje. E
como, num estudo diário, tento entender o que se passava na cabeça de dois
jovens de vinte e poucos anos para aturarem não dois, nem três, mas quatro
filhos!
A terceira dos quatro irmãos, cheguei
ao mundo numa quinta-feira do ano de 1997, em São Paulo. O mundo parecia um
lugar perfeito. Sempre fui a
garotinha de franja, cabelos castanhos e olhos "rasgados". Era o que queriam dizer por olhos puxados, pois
não era nada comparado a uma criança oriental, mas apenas como uma leve
característica.
Foi logo na infância que comecei a
desenvolver as personalidades dos meus pais na minha essência. Eu era a criança
que corria, cantava, dançava e desenhava. A criança que, quando aprendeu a
escrever o próprio nome, o escrevia em todos os lugares possíveis. Que fazia
imitações e que guardava cenas de filmes na cabeça, assim como todas as músicas
dos anos 80 que meu pai nos fazia escutar nas noites de sábado.
Ir para a escola era como um ritual
sagrado e prazeroso. Tudo o que produzia em sala de aula era produzido com
carinho e dedicação. Parte disso era devido ao fato de que me sentia
completamente motivada e orgulhosa de mim mesma ao receber os olhares afetivos
e elogios sorridentes das minhas professoras. Me alegrava pensar que elas
gostavam de mim e dos meus feitos. Ainda mais por alimentar o mesmo sentimento
de admiração por cada uma.
Fui uma criança extremamente confiante até
os 8 ou 9 anos de idade, quando passei a pesar mais do que as outras garotas.
Experimentei a cultura negativa do "corpo
perfeito" logo cedo. Me atingiu bem de baixo, sem que antes eu pudesse
entender os comos e os porquês. Minha auto-estima, aos poucos, era esmagada por
comentários maldosos das outras crianças e ideais-estereótipos de familiares.
Parei de correr e brincar, dado que as
outras garotas do condomínio, antes ditas minhas melhores amigas, faziam
questão de me repelir. Assim, meu único meio de diversão era me sentar em
frente a uma tela de computador e passar horas desfrutando de jogos virtuais
que não me agrediam, nem me xingavam e não me faziam chorar.
Na época, frequentava a igreja. Minhas
orações consistiam em pedir a Deus que me ajudasse a emagrecer e a me tornar
uma garota bonita. A pressão e a tristeza de não ser aceita apenas pela minha aparência fazia com
que eu me isolasse. Tentava parar de comer e chorava trancada no banheiro ao
sentir que não conseguiria alcançar o objetivo de me moldar à imagem que os
outros queriam ter de mim. Brigava com meu pai o tempo inteiro e escrevia sobre
a vontade de desaparecer. O mundo, o meu
mundo, já não parecia mais um lugar perfeito.
Em julho de 2008, meu pai recebe uma
ligação do Rio de Janeiro. Cinco meses depois, estou me despedindo do mundo que
conhecia. Me despeço do meu irmão mais velho que resolve ficar, da escola que
continuaria a estudar e de toda a família que só conseguia amar. Meus pais e
três dos quatro filhos, em prantos, entravam em um carro rumo a uma cidade
desconhecida. Do outro lado da floresta de prédios, onde eu, finalmente, veria
a praia. Agora estávamos a seis horas
de distância, vivendo em um novo apartamento no Rio de Janeiro.
Na nova escola e no novo condomínio, eu
era objeto de pesquisa. Todos queriam me ouvir falar, tanto para analisarem meu
sotaque paulistano e diferente quanto para me perguntarem sobre as
características de São Paulo - lugar que todo mundo parecia conhecer e julgar.
Me senti em casa e me apaixonei por tudo e todos, como sempre fazia. Meu jeito
vibrante e alegre abraçava, inconscientemente, o novo. "Você até parece carioca, mas é paulista",
era o que diziam.
Aos 15, descobri uma curiosa paixão
pela leitura de narrativas fictícias que tinham o poder de fazer com que eu me
imaginasse dentro das próprias histórias. Não demorou para que eu começasse a
escrever as minhas próprias. De início,
inventei um mundo onde tudo parecia natural e engraçado. Um mundo, esse, que
foi aberto ao público graças à internet e o intitulei de "O Seis
Perfeito". Tudo o que bastava era um clique e qualquer pessoa poderia se
imaginar vivendo nos meus personagens, na minha simulação de vida.
Diariamente, recebia mensagens de
garotas de diversas idades e lugares sobre os capítulos que escrevia. Depois de
um tempo, as mensagens passaram a não ser apenas sobre a história, mas também
sobre mim. Pessoas que nunca haviam me visto pessoalmente captavam minha
essência com seus próprios olhares e sentiam a necessidade de expressar o que
sentiam e pensavam ao meu respeito. Foi quando comecei a escrever e a
compartilhar sobre minhas próprias vivências.
Todas as minhas inseguranças, complexos
de auto-estima e mudanças psicológicas e físicas eram registradas em parágrafos
de auto-reconhecimento. Logo, minhas experiências pessoais e meu jeito de olhar
o mundo passou a ser, sem que eu tivesse noção de tamanho feito, fonte de
inspiração para quem me lia, para quem se identificava ou desejava se
identificar em cada ponto e vírgula.
Em fevereiro de 2015 - ano em que já
havia finalizado toda a narrativa, terminado o ensino médio e me encontrava
confusa sobre que rumo dar a minha vida e as minhas futuras escolhas como
escritora - recebi uma mensagem diferente; de um rapaz.
Me contou que sua irmã, uma leitora
criança que sempre me acompanhava, há algumas semanas havia perdido uma difícil
batalha contra a leucemia. Mas antes disso, escreveu cartas para as pessoas que
mais tinha significado em sua vida. Uma dessas pessoas era eu. Depois de ler o
que a irmã havia escrito para mim, resolveu me encontrar da forma que pôde.
Nunca consegui, de fato, ler a carta. Não conheci minha leitora, nunca
esquecerei seu nome e tomei como um abraço
tudo o que o seu irmão me disse:
"Seja
lá o que você faz, foi importante e bom, então, por favor, continue fazendo.
Muito obrigado por tudo que você fez pela minha irmã".
Eu escrevia sobre a vida. Eu me filmava
dançando e fazendo palhaçadas. Eu me mostrava. E tudo o que escrevia e fazia,
de repente, pareceu mais importante, mais forte, com algum sentido. Entendi
que, seja lá o que eu fosse continuar fazendo, só poderia acontecer se eu
pudesse estender minha mão e que, logo depois, conseguisse tocar outras
pessoas.
Ainda não sei se era o meu sonho ou o
sonho do meu pai projetado em mim, mas ingressar em uma Universidade sempre
fora algo almejado por mim. No início de 2016, na hora de escolher um curso,
dentre tantos mundos de números, teorias, ações e reações, escolhi Pedagogia. Não
apenas por gostar de crianças, como costumam perguntar e deduzir. Mas por
querer fazer alguma coisa que me desse um propósito, que me ajudasse a entender
algo além de mim e que fizesse, finalmente, sentido.
E o que mais fazia sentido na minha vida a não ser lidar com a troca de
experiências, de saberes e de histórias?
Hoje, sentada em frente ao teclado, num
exercício de escrever - ato que me ajudou a crescer e a me reconhecer como
protagonista social da minha própria história - sobre o que vivi e o que espero
ser, sinto que me encontrei e que, por mais inesperada e urgente que seja a
vida, posso continuar fazendo tudo o que faço de melhor, com tanto que seja bom
e que enxergue além de mim.
[Setembro de 2017, RJ]
Texto produzido na disciplina de (Auto)Biografia na faculdade.
Texto produzido na disciplina de (Auto)Biografia na faculdade.
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